Sunday, April 02, 2006

Meu coração se apaixona em cada manhã...

Era essa a frase que emanava na musica do irmão, o filho do cacique. O terremoto que atingia o meu corpo em companhia do chá, a entidade, era inédito e impressionante.

As pessoas estavam reunidas na casa do cacique. Comemoravam os 10 anos daquela tribo que formaram no cume da montanha, naquele lugar especial cuja vista da lagoa, da ilha e do mar, sozinha, despertava sabores profundos da alma contemplativa. A tenda moderna, que o cacique arquitetou para acolher e curar milhares de almas enquanto curava-se de sua triste infância, nos acolhia desde a vespera, e a musica já estava pulsando em nós.

Além dos outros irmãos indios buscadores, havia também o pajé, com os seus vários instrumentos, e a sua esposa. Eu sabia que haviam pessoas mágicas nesse mundo, porém nunca tinha conhecido nenhuma; nosso pajá era a figura mais estranha e mais fascinante que eu já vira, nele parecia que manifestavam se milhares de ancestrais. Havia uma energia eterna que fe-lo cantar com sua esposa de maneira muito linda, por horas, musica suave que conduziria o chá por nossas entranhas.

E havia o chá, em uma garrafa de vidro, ao lado do cacique. Este acendia as velas do altar, o incenso, a fogueira. O cacique era um homem honrado e de muito mérito, distribuiu o chá nas vasilhas, com muito respeito e agradecimento, principalmente ao distante produtor, no acre. Cada um tomou a sua dose, e todas as doses passaram por varias mãos.

A partir dali todos estavam sob o cuidado e proteção do cacique, porém livres. O pajé puxou a primeira musica, e a aldeia começou a acompanhar com os seus instrumentos. O som que emanava do cume da montanha amplificava-se nas madeiras das paredes, e toda a comunidade ao redor era abençoada.

Eu estava ali, pela primeira vez. A bebida era amarga. Quando tomei a dose lembrei me de todo o esforço que fizera, as seis horas de viagem, a semana sem beber e com pouca carne. Tomei-a sem pestanejar. A partir dali eu não tinha referências, eu sabia que nada seria como eu imaginara.

As pessoas aos poucos se soltavam ou abstraiam e si mesmas. A musica começou a envolver a todos, eu, porém, não sentia nada de diferente, e me sentia incomodo. Resolvi fechar os olhos um pouco e senti que havia algo levemente diferente, os pensamentos estavam mais visiveis, porém, nada de especial.

Antes eu rejeitara o instrumento à minha frente, um pandeiro, não haviamos nos dado muito bem. A minha voz decidiu querer soltar-se, e assim foi. Deitei me para trás e comecei a entrar na musica. A falta de folego habitual dissipou-se no momento em que deixei a garganta me levar sozinha. Nunca eu havia cantado assim, eu me sentia poderoso, e toda a aldeia resolveu cantar junto, lindo.

Encontrei o meu irmão de musica proximo ao banheiro, os olhos dele brilhavam. Perguntou a mim se havia "batido". A resposta foi negativa, "de leve"... O chá já estava em mim, eu é que ainda não estava em mim, acho.

"quer mais uma dose?" "sim". Me aproximei do cacique, e novamente recebi de suas mãos a vasilha com aquele conteudo mágico e amargo. Dessa vez sim.

Enquanto eu mantinha os olhos abertos eu estava lá, mas o chá convidava a fecha-los. E ai desenhava em conjunto com a musica paisagens simbolicas muito bonitas...navegava na alma, modificava e mexia o corpo, e eu sempre ali, em consciência.

O primeiro enjôo, a primeira lavagem, me dirigi ao banheiro escuro. O irmão de libra tocou me as costas e me conduziu ao grande fosso. Ali eu haveria de voltar em varias ocasiões na minha viagem para dentro de mim. Foi bastante duro, mas logo percebi que o vomito é sagrado, é limpeza, pus aos poucos tudo para fora.

Eu ainda não me sentia integrado e livre naquela familia de indios. A musica me tocava e me levava, porém, dessa feita eu não mais participaria dela. Eu ia ao grande fosso despejar os venenos que o chá tirava do cerne da minha alma, e das profundezas do meu corpo, voltava, me deitava, para alguns minutos depois voltar e despejar mais no grande fosso.

Naveguei por muitos mares da minha vida, da minha infância mais remota retomei o prazer de devolver ao mundo em forma de vômito as impurezas. Juntei peças muito remotas, e percebi que estou ainda longe de compreender a real dimensão do meu ser.

Eu estava muito a vontade com o chá, nesse momento eu o respeitava como entidade dentro de mim. Por alguns momentos interrompi todos os lamentos e contemplei a simples felicidade de existir...Desejei que a experiencia se mantesse por muito tempo.

Nas inumeras vezes que fui me purificar no grande fosso, encontrei irmãos botando as dores para fora, de sua forma caracteristica. O cacique ria e divertia-se quando via um de nós dirigindo-se ao grande fosso. Sábio, sabia que o chá estava trabalhando. Em uma dessas me ofereceu uma terceira dose.

"Eu sei ler pensamento viu?". Brincadeira ou não, cá estava eu com mais uma dose na mão. Ingeri com mais receio, pois estava vomitando antes de toma-la. Após ingerir, fiquei novamente sóbrio. Contemplei a musica por um tempo, e depois fechei os olhos mais uma vez.

Minha resistência estava um caco, eu não aguentava ficar sentado. Deitei e deixei o chá me levar para novas paisagens. Entrei em estados que eu reconheci, transes entre a vigilia e o sono. A musica do pajé gerava imagens lindas, a percursao dos irmãos alimentava e gerava movimento. O ritual já aproximava-se da sua quarta hora de duração e o pique seguia igual.

Meu irmão de viagem, o filho do cacique, o homem cuja musica ainda dominará o seu ser completamente, pegou o seu violão. Começou a tocar uma musica de sua autoria, que eu ja conhecia e já havia tocado com ele. Sempre achara uma musica especial, porém, nunca havia sentido a força da mesma. Meu corpo estremeceu feito um terremoto, aquela musica parecia que convocava a terra a reconstruir o mundo naquele momento. Tudo vibrou.

Fui ao grande fosso pela ultima vez. Dessa vez apenas o chá saiu, com o mesmo gosto que entrou...e eu senti que o fim se aproximava. Logo reunimo-nos, o pajé recolheu os instrumentos. Houve a minha musica, com o belo solo do irmão musical. A semente de uma nova parceria no final da cerimônia dos ancestrais. Muito bonita.

O bem estar era completo naquele momento. A sensação de pureza e saúde. Todos reunem-se, entoam um ultimo mantra, um OM. Sentam, e partilham as proprias experiências.

Acaba o ritual, e vou até uma roda onde se encontra o pajé. Pergunto se ele fora ao peru alguma vez, porque nitidamente ele era um indio para mim. Um Inca. Equador, apenas...num desses 50 anos de estrada espiritual com o ayahuasca.

"Quando voce toma o chá você não pode ficar muito trancado na atualidade. A atualidade é legal, é você hoje, mas amanhã o seu corpo acaba e você some, tem que abrir mais. Muita gente tomou esse chá e estão por ai, junto com a gente."

As palavras tocaram fundo. Senti que o caminho apenas começa. O chá e os seus escolhidos apresentaram o seu cartão de visitas.

Novos acontecimentos acontecerão, a aldeia do descendente começará em breve, e estarei lá também.
O chá chamará os certos.

Paz e luz.

1 Comments:

At 02 April, 2006 20:48, Anonymous Anonymous said...

A corragem nos leva ao fundo... fundo da alma... fundo do poço, mas lá encontramos a nós mesmos. Que seja lindo o teu encontro contigo... abraços

 

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