Friday, October 17, 2008

Kunderações

Quero iniciar essa conversa dizendo que sou fã de carteirinha do Milan Kundera. Não, não se trata de uma versão tchecoeslovaca do clube rossoneiro de milão. Trata-se um escritor de romances.

Não posso dizer que eu seja um leitor de grande nível e aspirações. Não li 97% dos grandes classicos da literatura, mal folheei shakespeare, de Oscar Wilde só sei que era veado. Nada li de suas linhas. E o resto dos grandes não sei direito quem são, tirando algumas excessões como o (sensacional) Herman Hesse. Mas o Kundera, buenas... ja tô no meu quarto romance, com o quinto devidamente engatilhado. Sou fã e vou devorar o que eu achar dele pra ler.

O mágico Kundera pega minha vida e atravessa ao meio como se fosse uma lancinante espadada do zorro. Me desnuda frente aos meus sentimentos e purifica minha visão historica dos acontecimentos da minha vida. Não que ele seja parecido comigo, o fato é que trata-se de um gênio com seus olhos apontados para os vários tipos de miseráveis humanos, e consegue extrair a beleza e a inteligência que emana dessa maçaroca que se forma entre as vidas em que cada um de nós está metido.

Além de eu me aproveitar dos romances para refletir no espelho dos personagens as minhas próprias histórias, sempre há implicado uma série de outros personagens que vem a contá-la de outro jeito, de um ponto de vista que anula toda aquela costurada forma de ver que eu me identifiquei. Torna risível.
Ler um livro do Kundera é ler o multi, os varios lados de uma historia e, principalmente, a forma como isso tudo se mistura na forma de relação entre as pessoas. É contemplar o vazio aterrador que mora na ausência de uma verdade única, e ao invés disso, ser invadido pelas infinitas possibilidades de versões humanas sobre os acontecimentos cotidianos, amores, sexo, política e a musica.

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A Insustentavel leveza do ser. Assim chama-se o romance que comecei a ler hoje a tarde. Ele oferece logo de cara uma cena que vou ter que postar aqui. Ao ler, foi como se eu fosse convidado a uma reprise cinematrográfica de uma cena marcante do meu passado recente, 2006. Uma cena que mantenho viva e que nenhum detalhe dela me escapa, é um romance, um conto cinematografico na minha memória. Kundera me oferece então, como que uma refilmagem com outros personagens, outro cenário, outro contexto, com o dedo da sua genialidade diante de um sentimento bruto, que surge da mesma fagulha desse "drama" que vivi, e vira um incendio de grandes proporções. Algo que é também por assim dizer, universal na humanidade. Sua versão me fez mergulhar com a maturidade atual nas ondas do passado e transcende-lo novamente, Pô-lo diante de uma revisão.
E então, modificar o passado, esse ente que nos acompanha sempre vivo, intocável, mas ao mesmo tempo mutável, modificando-se assim que é revisitado, revisto com os olhos de quem amadurece ao longo da vida. Assim também é o presente e o futuro. Os tres tempos não tem bordas definidas.

Segue entre aspas o texto:

"(...) Volta, mais uma vez e sempre, à imagem daquela mulher deitada no divã. ela não lhe lembra de ninguem de sua vida de outros tempos. Não era amante nem esposa. Era uma criança em uma cesta abandonada em um rio que ele tirara da correnteza e colocara no regaço de seu leito. Ela havia adormecido. Ele se ajoelhara ao seu lado. Sua respiração febril se acelerava e ele ouviu um leve gemido. Encostou o rosto contra o dela e sussurrou palavras reconfortantes durante o sono. No fim de alguns instantes, sua respiração tornou se mais calma e seu rosto se levantou maquinalmente em direção ao dele. Sentiu nos labios o cheiro um pouco acre da febre e o aspirou como se quisesse se impregnar da intimidade de seu corpo. Imaginou então que ela estava na casa dele já a muitos anos e morria. De repente lhe pareceu evidente que não sobreviviria à morte dela. Estendeu-se ao seu lado para morrer junto com ela. Seus rostos uniram-se sobre o travesseiro e assim ficaram por muito tempo.
No momento Tomás está de pé na janela e relembra esse instante. O que seria senão o amor que assim se revelava?
Mas seria amor? Estava persuadido de que queria morrer ao lado dela e esse sentimento era claramente exagerado: estava vendo-a então pela segunda vez na vida! Não seria mais a reação histérica de um homem que, compreendendo em seu foro intimo sua inaptidão para o amor, começa a representar para si mesmo a comédia do amor? Ao mesmo tempo, seu subconsciente se mostrava tão covarde que escolhera para sua comédia essa modesta garçonete de província que não tinha praticamente possibilidade de entrar em sua vida.
Olhava os muros sujos do pátio e compreendia que não sabia se era histeria ou amor.
E, nessa situação em que um verdadeiro homem saberia agir imediatamente, ele se recriminava por negar assim ao mais belo instante de sua vida (está de joelhos à cabeceira da moça, convencido de não sobreviver à sua morte) a sua plena significação.
Torturava-se com recriminações, mas terminou por convencer-se de que era no fundo normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores e nem corrigi-la nas posteriores."
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Ainda estou na pagina 34, muitas aguas vão rolar.

Mas enfim. Sempre que me pego pensando ainda nessas velhas fotos do album acabo me auto-censurando um pouco. O passado não deve ocupar muito do pensamento de ninguem, apenas se for pra esvaziar a energia de algo que se repete sem cessar. Algo que se repete por travar, atolar...

Coisas do ser.

Deu. Enchi o saco de escrever por hoje.

:]

1 Comments:

At 19 October, 2008 16:52, Anonymous Anonymous said...

"nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores e nem corrigi-la nas posteriores."

que super! tive vontade de ler agora. :T

 

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